sábado, 24 de julho de 2010

XI

alguém estava morto logo abaixo, ele podia sentir. não fedia nem estava gelado. estava morno como chá esquecido em cima da pia. exalava uma saída às pressas. ele havia pisado na carne enquanto tentava descer a escada do prédio. era estranho o silêncio dessa parte do mundo em meio ao preto.  de que teria morrido a pobre criatura? susto? medo? velhice? quis tocar a pele para tentar descobrir a idade, o sexo, a causa, mas lembrou que o corpo era sagrado. se o tocasse, toda sua razão existencial se evaporaria. ele era feito para santidade, não podia se contaminar.

mas junto com a negritude do mundo, vinha o desejo. quem descobriria? era a chance de aproximar-se, de sentir o contorno do indivíduo, de tentar sentir como eram os pelos.

encostou sua face em qualquer parte do corpo. não entendia. ele achava que a carne era como defeito de parafusos, deformidade de corrente, engrenagem mal conectada. mas o corpo caído era macio. sentiu primeiro as unhas, depois cheirou as sobrancelhas e passou o nariz pela orelha.

o mundo poderia estar envolto a medo e insegurança, mas o desejo nele crescia. vinha pelos pés, passava pelos joelhos, alcançava o peito e explodia nas têmporas.

ele arfou. e como quase todo homem santo, curvou-se. passou a língua nos dentes que estavam mortos e suspirou. havia gosto ainda. em meio a ausência de cor, ele fechou os olhos e talvez tenha adormecido ou se perdido em pensamentos por alguns minutos. ninguém viu. segurou então as mãos do morto e citou uma prece que quase ninguém conhecia.

aí continuou seu trajeto de tatear e descer a escada.

por hanny saraiva

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