sexta-feira, 22 de outubro de 2010

CII

Vou te contar uma estória.
Chega aqui, mais perto do fogo, mas cuidado, nesses noites de vento gelado o fogo pode te queimar sem você perceber.
Pois bem. Eu tinha 27 anos naquela época. Morava numa cidade e ia trabalhar em outra, bem maior e movimentada.
As ruas eram cheias de gente, que andavam apressadas de um lado pro outro. E os vendedores ambulantes vendiam de tudo nas ruas. Mesmo correndo pra não me atrasar eu tinha tempo de admirar os prédios enormes e espelhados. Era tudo muito bonito.
E eu achava que ia ficar rico, ser um daqueles executivos com carros novos e motoristas e secretárias loiras e notebook a tiracolo. Era ingênuo e irresponsável. Não era ainda o homem que sou.
Foi numa manhã chuvosa que encontrei aquele homem. Eu andava apressado, pois já estava atrasado. Me lembro da cena. Olhei pra frente, vendo todo aquele mar humano seguindo a mesma direção que eu. E naquele mar de repente esse homem parou, virou de costas e ficou me olhando. Continuei andando, e ele continuou parado, olhando pra mim. Quando cheguei perto, fui me desviar, mas ele me barrou a passagem, sempre olhando em meus olhos. E os olhos dele eram tristes, estáticos, como se não tivesse expressão. Você nem deve se lembrar como os olhos das pessoas conseguem dizer sobre elas...
Ele me disse: "Cuidado com suas escolhas". Eu falei pra ele sair da minha frente, e continuei andando. Já alguns passos depois eu olhei para trás, e ele continuava parado, olhando em minha direção com aqueles olhos tristes, enquanto dezenas de pessoas passavam por ele. Fiquei um pouco assustado, mas continuei em frente.
Cheguei em frente ao grande prédio de janelas espelhadas onde trabalhava, e bem na porta havia um vendedor ambulante, com sua pequena barraca de madeira montada, com várias bugigangas indecifráveis. Mesmo atrasado eu parei para olhar
Havia um pinguim-anão, uma vela e uma canção escrita em letra cursiva. O vendedor tinha a mão manchada com pintas avermelhadas e duas verrugas não muito salientes. Ele não me olhou nos olhos. Seu olhar estava fixo nos objetos que eu observava.
É de uma ilha dos mares austrais, ele disse segurando o pescoço do pinguim - Ele pode te mostrar a casa, mas não vai te mostrar o número, continuou ele alisando as asas atrofiadas da ave. O pinguim tinha os olhos marejados. Pude ouvir de dentro dele ‘Cada escolha é uma consequência jogada no mundo e consequências são como bocas de leão.’
Me assustei e pisquei mais rápido que o normal . Quando percebi o vendedor estava a acender a vela. Quis dizer não, não, por favor não acenda, mas o pavio curto foi mais rápido que as palavras. A mãe dele havia lhe presenteado com uma vela azul e ele levou para lá por respeitar os mais velhos. A vela vai te guiar, ele disse que ela disse, vai te mostrar a ter paciência, mas também vai te confundir com o bruxulear. Vai te fazer nomear o que você acha que é alegria, o que é tristeza, o que é necessidade e o que é superficial. Mas nada disso será real.
Eu poderia ter apagado a chama com os dedos, mas o vendedor assoprou e a enrolou em um pedaço de jornal assim que peguei o papel, com letras tremidas escritas de forma rápida.
Essa é a canção pra sua vida, ele disse.
Eu dei uma risadinha de boca fechada.
Você vai escrever e reescrevê-la, mas tudo o que você precisa saber está aí, ele continuou. 
Não tem nome, retruquei ironizando. 
Você dá nome a sonhos quando acorda? – ele perguntou sério.
O vendedor ambulante colocou na mesma sacola a vela e o papel com a canção. O pinguim ele hesitou um pouco. Era nítido que o animal despertava afeição.
Me pague quando sair de sua mesa, quando suas gavetas estiverem cheias e sua vida for mais do que dor de cabeça – ele me disse colocando o animal gordurento sobre meus braços. O pinguim quase caiu, mas eu consegui fazer uma concha pra que ele não despencasse.
Se você não suporta tudo que carrega em você, por favor, saia de fininho. Não faça besteira nem grite, gosto de quem fala sem se alterar.  
Eu dei apenas dois passos para trás.
A vida continuou. Eu cresci dentro da firma, me tornei um dos diretores. Conheci uma bela mulher e tive um filho. Tudo parecia bom para mim. 
Cuidei da pequena ave, que engordou mas nunca perdeu a tristeza no olhar. 
A vela acendi 4 vezes, e tive respostas pra minhas perguntas. A última resposta foi que era eu mesmo quem deveria responder a todas as perguntas.
O papel com a música eu nunca abri, nunca tive coragem de ler. Talvez devesse ter lido, talvez tivesse sido diferente.
Como dizia, foi quando tudo estava bom como nunca para mim que encontrei aqueles dois homens novamente. O primeiro me veio em sonho. Disse que todas as escolhas que tinha feito teriam repercussão em breve, mas que a próxima seria a crucial. Ele me dizia isso boiando de braços abertos numa pequena piscina daquelas de plástico, sabe? Eu não podia levar à sério num sonho falando de escolhas pra mim numa piscininha de plástico, podia?
Não podia mas devia...
Aquele dia parecia outro dia tão normal como o do primeiro encontro, apesar do sonho, que a essa altura já estava em processo de esquecimento. Estava descendo do carro, no estacionamento do prédio da empresa, quando percebi uma figura esguia me esperando.
-Vim cobrar sua dívida.
- Eu não te devo nada. Tudo que conquistei foi por meu esforço! 
- Vim cobrar sua dívida.
- O que você quer? - perguntei a ele.
- Você tem uma escolha. Ou vem comigo, ou não vem comigo.
Apesar de não entender o que acontecia, eu fui tomado por um grande medo. Aquele homenzinho não havia levantado a voz, nem tido qualquer outra expressão, mas tive medo dele. Voltei pro carro correndo e acelerei, passando por cima dele. Olhei pelo retrovisor e vi aquele corpo pequeno no chão. Fui tomado por um medo ainda maior, que me imobilizou por alguns segundos. Mas voltei. Saí do carro e corri até ele, que não parecia estar ferido.
- Pensei que não fosse vir.
Então seus olhos se tornaram negros, e as luzes do estacionamento se apagaram, e a luz do sol lá fora foi ficando mais fraca, e mais fraca, e mais fraca, até tudo se tornar escuridão.
Foi assim que aconteceu. Foi tudo culpa minha.

Mas quem você acha que ele era? Deus? O coisa-ruim? E por quê a luz acabaria por sua causa?

Acho que não, pequeno. Não acredito nessas coisas. E nem sei porque a consequência do meu erro foi tão ruim. Nem sei qual foi o erro, na verdade. Mas foi culpa minha. Tudo isso. Mas hoje eu tive um sonho. Uma voz que nunca vou esquecer me disse que em breve eu terei outra chance.
E dessa vez eu não vou errar. Não vou não.

por mazé mixo e hanny saraiva

Nenhum comentário:

Postar um comentário