sexta-feira, 29 de outubro de 2010

CVI

O estalo se deu, talvez ali, enquanto os versos manchavam o papel. A Escuridão não tardou a envolver todo o ambiente. Se desse para ler ou ouvir, o poema natimorto gritaria a sensação que agora existia. No escuro, com medo, talvez, riscar palavras, esquecer sentimentos fosse uma saída. Porém, as palavras que traduziam a alma, mesmo riscadas, esquecidas, não abandonaram a Escuridão.
por silveira machado

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

CV

No início do século 21, especulava-se que eram feitas duas clarividências por dia. As pessoas já nem se importavam mais com tais previsões, tanto que a mais surpreendente destas fora do vidente Tunico Diabo: "- A Terra corre perigo, alguém irá tacar algo em sua cabeça, causando-lhe um grave traumatismo."
No dia seguinte, o candidato a Presidente José Serra foi atingido na careca por uma bolinha de papel.
Mas a humanidade volta a dar atenção às previsões no dia 25 de outubro de 2010, quando ao invés de duas, foram feitas três clarividências. A primeira foi da mãe Diná: "- Pessoas irão morrer hoje". Foram registradas 532 mortes em hospitais, estradas e favelas em todo Brasil. A segunda foi a de João Maravilha: "- O X-tudo custará 4 reais e 50 centavos". E tudo começou na Lapa. O terceiro foi a de Polvo Paul que estava agitado em seu aquário e fez a previsão: "- A luz de todo Universo irá desaparecer e todos os peixes com luz própria irão morrer, pois suas almas se apagarão".
No dia seguinte ele foi encontrado morto em seu aquário e com seus 8 pulsos cortados.
Aula de História, ano 5 da era Escuridão
por getulio ribeiro

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

CIV

Todos os dias as pessoas acordavam, mas a Escuridão arrancava sonhos. Depois do ano I houve o período de Adaptação. O Período de Adaptação consistia em uma identificação de fluxos de neurônios para descobrir o que se pensava. Descobriram que algumas pessoas tinham Síndrome de Inadequação Mental. Algumas pessoas tinham pesadelos. No começo quase ninguém lembrava, mas quando um expressou a experiência, multidões começaram a vivenciá-la.

Cristal foi a primeira. O pesadelo na Escuridão não era feito de cores nem de movimentos nem de imagens há tempos adormecidas. Pesadelos eram feitos de descontrole corporal. Ao deitar e fechar os olhos o período de REM mandava choques para as pontas dos dedos.

Cristal foi a primeira a percebê-los. Depois dos choques, os braços ficavam presos, rentes ao corpo. As unhas latejavam, as têmporas pinicadas com alfinetes. Mas a pior parte acontecia na barriga. O clímax do pesadelo acontecia quando um peso sobre a massa do sonhador exprimia a gordura do abdômen. A pessoa achava que estava sem ar e as informações obtidas com os voluntários mostraram resultados semelhantes à torturas de guerra.

Foi por causa de Cristal que os líderes começaram a se interessar por pesadelos. Ela acordava com as veias alteradas, seu corpo lutava contra sua mente tentando se libertar das amarras oníricas. Era uma luta física. Depois de 349 pesadelos, as veias engrossaram tanto que Cristal passou os últimos 433 dias de sua vida sem dormir. Lutou até estourar, como em autocombustão.

Os olhos não mais enxergavam, mas os corpos reagiam e a mente desconstruía-se para se adaptar. Alguns diziam que pesadelos eram como grãos de prata de película. Ninguém imaginava o que viria quando o corpo finalizasse o filme. Poucas pessoas só sonhavam. 

por hanny saraiva

terça-feira, 26 de outubro de 2010

CIII

"Não caíras em tentação!"
 
Jornada cineclubista em Recife.
Em meio a uma das reuniões da Jornada, toda a luz daquele local desapareceu, assim como toda a luz do Universo. Ninguém grita afirmando estar cego ou coisa do tipo, porém começam a conversar:
 
COUTO
Blackout?
 
KDU
Mas são 2 da tarde, deveria estar claro, não?
 
COUTO
Fudeu cara, o que a gente faz?
 
KDU
Ahh, vamos fumar maconha.
por getúlio ribeiro

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

CII

Vou te contar uma estória.
Chega aqui, mais perto do fogo, mas cuidado, nesses noites de vento gelado o fogo pode te queimar sem você perceber.
Pois bem. Eu tinha 27 anos naquela época. Morava numa cidade e ia trabalhar em outra, bem maior e movimentada.
As ruas eram cheias de gente, que andavam apressadas de um lado pro outro. E os vendedores ambulantes vendiam de tudo nas ruas. Mesmo correndo pra não me atrasar eu tinha tempo de admirar os prédios enormes e espelhados. Era tudo muito bonito.
E eu achava que ia ficar rico, ser um daqueles executivos com carros novos e motoristas e secretárias loiras e notebook a tiracolo. Era ingênuo e irresponsável. Não era ainda o homem que sou.
Foi numa manhã chuvosa que encontrei aquele homem. Eu andava apressado, pois já estava atrasado. Me lembro da cena. Olhei pra frente, vendo todo aquele mar humano seguindo a mesma direção que eu. E naquele mar de repente esse homem parou, virou de costas e ficou me olhando. Continuei andando, e ele continuou parado, olhando pra mim. Quando cheguei perto, fui me desviar, mas ele me barrou a passagem, sempre olhando em meus olhos. E os olhos dele eram tristes, estáticos, como se não tivesse expressão. Você nem deve se lembrar como os olhos das pessoas conseguem dizer sobre elas...
Ele me disse: "Cuidado com suas escolhas". Eu falei pra ele sair da minha frente, e continuei andando. Já alguns passos depois eu olhei para trás, e ele continuava parado, olhando em minha direção com aqueles olhos tristes, enquanto dezenas de pessoas passavam por ele. Fiquei um pouco assustado, mas continuei em frente.
Cheguei em frente ao grande prédio de janelas espelhadas onde trabalhava, e bem na porta havia um vendedor ambulante, com sua pequena barraca de madeira montada, com várias bugigangas indecifráveis. Mesmo atrasado eu parei para olhar
Havia um pinguim-anão, uma vela e uma canção escrita em letra cursiva. O vendedor tinha a mão manchada com pintas avermelhadas e duas verrugas não muito salientes. Ele não me olhou nos olhos. Seu olhar estava fixo nos objetos que eu observava.
É de uma ilha dos mares austrais, ele disse segurando o pescoço do pinguim - Ele pode te mostrar a casa, mas não vai te mostrar o número, continuou ele alisando as asas atrofiadas da ave. O pinguim tinha os olhos marejados. Pude ouvir de dentro dele ‘Cada escolha é uma consequência jogada no mundo e consequências são como bocas de leão.’
Me assustei e pisquei mais rápido que o normal . Quando percebi o vendedor estava a acender a vela. Quis dizer não, não, por favor não acenda, mas o pavio curto foi mais rápido que as palavras. A mãe dele havia lhe presenteado com uma vela azul e ele levou para lá por respeitar os mais velhos. A vela vai te guiar, ele disse que ela disse, vai te mostrar a ter paciência, mas também vai te confundir com o bruxulear. Vai te fazer nomear o que você acha que é alegria, o que é tristeza, o que é necessidade e o que é superficial. Mas nada disso será real.
Eu poderia ter apagado a chama com os dedos, mas o vendedor assoprou e a enrolou em um pedaço de jornal assim que peguei o papel, com letras tremidas escritas de forma rápida.
Essa é a canção pra sua vida, ele disse.
Eu dei uma risadinha de boca fechada.
Você vai escrever e reescrevê-la, mas tudo o que você precisa saber está aí, ele continuou. 
Não tem nome, retruquei ironizando. 
Você dá nome a sonhos quando acorda? – ele perguntou sério.
O vendedor ambulante colocou na mesma sacola a vela e o papel com a canção. O pinguim ele hesitou um pouco. Era nítido que o animal despertava afeição.
Me pague quando sair de sua mesa, quando suas gavetas estiverem cheias e sua vida for mais do que dor de cabeça – ele me disse colocando o animal gordurento sobre meus braços. O pinguim quase caiu, mas eu consegui fazer uma concha pra que ele não despencasse.
Se você não suporta tudo que carrega em você, por favor, saia de fininho. Não faça besteira nem grite, gosto de quem fala sem se alterar.  
Eu dei apenas dois passos para trás.
A vida continuou. Eu cresci dentro da firma, me tornei um dos diretores. Conheci uma bela mulher e tive um filho. Tudo parecia bom para mim. 
Cuidei da pequena ave, que engordou mas nunca perdeu a tristeza no olhar. 
A vela acendi 4 vezes, e tive respostas pra minhas perguntas. A última resposta foi que era eu mesmo quem deveria responder a todas as perguntas.
O papel com a música eu nunca abri, nunca tive coragem de ler. Talvez devesse ter lido, talvez tivesse sido diferente.
Como dizia, foi quando tudo estava bom como nunca para mim que encontrei aqueles dois homens novamente. O primeiro me veio em sonho. Disse que todas as escolhas que tinha feito teriam repercussão em breve, mas que a próxima seria a crucial. Ele me dizia isso boiando de braços abertos numa pequena piscina daquelas de plástico, sabe? Eu não podia levar à sério num sonho falando de escolhas pra mim numa piscininha de plástico, podia?
Não podia mas devia...
Aquele dia parecia outro dia tão normal como o do primeiro encontro, apesar do sonho, que a essa altura já estava em processo de esquecimento. Estava descendo do carro, no estacionamento do prédio da empresa, quando percebi uma figura esguia me esperando.
-Vim cobrar sua dívida.
- Eu não te devo nada. Tudo que conquistei foi por meu esforço! 
- Vim cobrar sua dívida.
- O que você quer? - perguntei a ele.
- Você tem uma escolha. Ou vem comigo, ou não vem comigo.
Apesar de não entender o que acontecia, eu fui tomado por um grande medo. Aquele homenzinho não havia levantado a voz, nem tido qualquer outra expressão, mas tive medo dele. Voltei pro carro correndo e acelerei, passando por cima dele. Olhei pelo retrovisor e vi aquele corpo pequeno no chão. Fui tomado por um medo ainda maior, que me imobilizou por alguns segundos. Mas voltei. Saí do carro e corri até ele, que não parecia estar ferido.
- Pensei que não fosse vir.
Então seus olhos se tornaram negros, e as luzes do estacionamento se apagaram, e a luz do sol lá fora foi ficando mais fraca, e mais fraca, e mais fraca, até tudo se tornar escuridão.
Foi assim que aconteceu. Foi tudo culpa minha.

Mas quem você acha que ele era? Deus? O coisa-ruim? E por quê a luz acabaria por sua causa?

Acho que não, pequeno. Não acredito nessas coisas. E nem sei porque a consequência do meu erro foi tão ruim. Nem sei qual foi o erro, na verdade. Mas foi culpa minha. Tudo isso. Mas hoje eu tive um sonho. Uma voz que nunca vou esquecer me disse que em breve eu terei outra chance.
E dessa vez eu não vou errar. Não vou não.

por mazé mixo e hanny saraiva

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

CI


A “ coisa” aconteceu tão repentinamente que não permitiu que planos fossem traçados e alguma defesa engendrada com o intuito de rechaçar de imediato a invasão que se fazia iminente. Tudo começou tão rápido que não houve meio pra que algo fosse feito pra se defender daquele inesperado e surpreendente ataque, onde as trevas pondo em risco o próprio equilíbrio do Universo, acabaram por dominar a luz, pra levar com elas todas as cores dos nossos arco-íris e das auroras boreais, com intenção de explorá-las comercialmente. Durante o tempo em que a claridade ia se apagando, as sombras que se materializavam ao seu redor eram tragadas por uma medonha escuridão que a tudo invadia e dominava. 
O medo se estabeleceu criando confusão e pânico. Até mesmo para as estrelas, protegidas pela distância que as separava daquele ponto, faltou coragem pra abrir seus olhos de luz e enxergarem ao longe o estranho fenômeno que se apoderava da abobada celeste, demonstrando clara intenção de esconder-se atrás das próprias sombras para, no momento propício, praticar o assalto e tomar pra si as cores dos nossos arco-íris e das auroras boreais. Nem o sol com toda a sua grandeza conseguiu fazer com que seus raios penetrassem na densa e tenebrosa escuridão. 
O horror instalara-se por todo aquele imenso espaço, levando ao  mais completo desespero uma população inteiramente petrificada pelo pavor que a tornava incapaz de reagir diante do inusitado. Aterrorizadas, as pessoas procuravam se unir umas às outras, buscando se proteger. Porém, apesar de tudo, aqueles momentos de sofrimento e desespero fizeram com que grande parte das pessoas envolvidas naquele triste episódio meditasse sobre seus pontos de vista em relação a tudo que as cercava. Principalmente naqueles que dissessem respeito aos seus semelhantes. A reflexão as levou a fazer algumas interrogações pra si mesmas. Reviram alguns conceitos de vida. E se perguntaram: Só diante do medo inesperado teriam que ser iguais? Por que não, sempre? O consenso foi geral: Não eram melhores nem piores do que ninguém. E foi assim que velhos tabus foram abandonados pelo caminho; antigas tradições foram quebradas e atiradas
fora; preconceitos de todas as espécies foram deixados de lado e complexos foram esquecidos. No meio do mais completo caos já presenciado, todas as diferenças foram anuladas e deixaram de existir; níveis sociais caíram por terra; os complexos, a partir daquele instante, perderam o sentido pra continuar existindo.
Só mesmo o amor acompanhado de uma grande dose de desprendimento permaneceu mantendo a sua razão de ser durante todos aqueles momentos de pavor e de incertezas.
Depois de passados cerca de seis dias na mais plena e absoluta escuridão, que - na opinião dos amedrontados e bastante modificados moradores da região - valeram por seis séculos. Finalmente, depois desse período de quase uma semana, da mesma forma como chegaram, as trevas se retiraram sem alcançar
seus objetivos, devolvendo o lugar da luz que retornou à sua posição, voltando a ocupar o espaço que por direito sempre foi dela. A partir daquele momento, naquele lugar, nem tudo voltou a ser como era antes.
Dias depois daqueles cruciais momentos de pavor, as autoridades locais mandaram efetuar um balanço patrimonial com a finalidade de apurar os possíveis danos causados por aquele estranho apagão que colocou em polvorosa toda a população de uma vasta e populosa região. Verificou-se, com a realização do trabalho, que todas as cores dos arco-íris catalogados, bem como todos os matizes das auroras boreais, estavam intactos e acomodados em seus devidos lugares. É que com o “ black-out” , receosas de que algo de muito grave pudesse acontecer, todas as cores desses arco-íris e das auroras boreais correram e procuraram se esconder pra se livrarem da perseguição das trevas, que pretendiam tomá-las pra si e fazer com elas um caleidoscópio gigante. Espertas, as cores desapareceram valendo-se do apoio proporcionado pela própria escuridão. Por esse motivo não foram capturadas e nem levadas pelas trevas, que não obstante
tivessem revirado tudo de cabeça pra baixo, não puderam encontrar e nem levar com elas o que premeditadamente tinham ido buscar.

por gelson maciel amaral

C

cadê o abridor de latas, gritou nervoso. não vejo esta merda, será que esquecemos lá em cima?
calma que o mundo não acabou, querido. só a luz que sumiu, disse-lhe a mulher tocando-lhe no braço.
ah... suspirou quase aliviado.
rodeados de latas e mantimentos na escuridão do porão se preparavam para a terceira guerra mundial.

por iris yan

terça-feira, 19 de outubro de 2010

XCIX

Na Escuridão já não havia mais bruxos. Ninguém sabia quando era Lua Cheia ou Minguante, então Ana Clara parou de dançar pelada pelas fogueiras, pois não conseguia mais enxergar as brasas. Parou também de ir para a janela gritar Mãe Natureza.  Não viu mais sentido em sua vida, então passou a costurar meias e a trocá-las em troca de bananas. Passou fome. No escuro, as pessoas escorregavam pelo chão de taco e batiam sempre a cabeça. Ela foi queimada viva como na era da Inquisição. Chamaram-na de Ave Maldita do Pé.
por hanny saraiva

terça-feira, 12 de outubro de 2010

I e XV Revisitados



por mazé mixo (texto) e henrique de sá (música)

XCVIII


O ruim da Escuridão, é que todo mundo usa máscara. Eu não sei quem é ninguém, você pode ser qualquer um quando eu não te vejo.
Eu posso contar a maior mentira do mundo e ninguém vai notar que minhas pupilas dilataram ou que eu hesitei na hora de falar. Eles vão ouvir, engolir e pronto. A Escuridão cobriu a cara da mentira, e só deixou o som.
Eu posso me apaixonar por alguém que canta Chico Buarque no supermercado e nunca saber o seu jeito de andar, o seu sabor de miojo favorito , suas expressões faciais e o sua maneira de levantar as sobrancelhas quando acontece algo inesperado. A Escuridão me tirou o tato visual, e me deixou com lembranças.
Acho que para ser sincero, todo mundo sempre usou máscaras. Mesmo antes do escuro. A diferença é que agora, eu nunca mais vou poder julgar um livro pela capa.

por saulo martins

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

domingo, 3 de outubro de 2010

XCVI

Grotovsky entrou na moda. Nos lugares em que se ouvia três pontos de sons percussivos agudos havia a interpretação de uma cena. Ontem eu estava andando no calçadão de Copacabana quando ouvi som de copo, triângulo e madeira na direção da areia. Entrei, nunca havia participado. Senti seios nos meus braços, fiquei excitado, senti pau nas pernas, ainda continuei excitado, até que senti cheiro de cocô e saí correndo. - Que gente louca!

por henrique de sá